Ética e direitos animais (3) - Racionalidade, Uso e Ação ...Humana?


O artigo anterior, Crítica à conclusão hoppeana, tratou da injustificabilidade argumentativa da agressão a animais, assumida a validade incontestável da norma de primeiro-usuário-primeiro-dono.

Uma última saída àqueles que negam direitos a animais seria apelar a um significado especial para "uso", argumentando que ele é feito por meio da ação, que só seres humanos, racionais, seriam de fato seres que agem e que, dessa forma, animais não poderiam ser donos porque nem sequer usam seus próprios corpos.

O que é uso - considerações sobre controle direto
Em primeiro lugar, vamos definir então o que caracteriza o "uso": trata-se de um vínculo de controle direto entre o possuidor e a coisa possuída. No artigo How We Come to Own Ourselves, Stephan Kinsella nos fornece uma boa explicação sobre isso:
"O "link objetivo" no caso da propriedade de corpos é o relacionamento único entre uma pessoa e "seu" corpo - o controle direto e imediato sobre o corpo dele, e o fato de que, pelo menos em algum sentido, um corpo é uma dada pessoa e vice-versa. Isso é o que constitui o link objetivo e suficiente para conceder àquela pessoa um melhor título [de propriedade] a seu corpo do que o de qualquer terceiro reclamante, até mesmo seus pais. 
Além disso, qualquer terceiro que reivindique a propriedade de outro corpo não pode negar este link objetivo e o status especial dele, já que esse terceiro necessariamente o pressupõe em seu próprio caso. Isso é assim porque ao procurar dominação sobre o outro, ao afirmar propriedade sobre o corpo de outro, esse terceiro tem que pressupor sua própria propriedade sobre seu corpo, o que demonstra que ele reconhece uma certa significância neste link, ao mesmo tempo em que desconsidera a significância do link para o outro."
Kinsella, é claro, estava pensando em "pessoa" quando escreveu, mas nada do que ele disse deixa de ser válido para animais. O relacionamento único entre um ser e seu corpo não deixa de existir nem de ser um link objetivo só porque esse ser é de outra espécie; e nenhum terceiro pode negar a significância desse link, pois ao fazer isso o ato dele já demonstra a significância desse link.

No mesmo sentido, Hoppe escreveu:
"Ninguém poderia considerar o meu corpo como sendo um produto de sua vontade da mesma forma como eu posso considerá-lo um produto da minha vontade; essa pretensão ao direito de determinar o uso desse recurso escasso que chamo de "meu corpo" seria uma reivindicação de não-usuários, de não-produtores, e estaria baseada exclusivamente na opinião subjetiva, ou seja, numa declaração meramente verbal de que as coisas deveriam ser desta ou daquela forma."
Declarações meramente verbais baseadas na opinião subjetiva de que as coisas deveriam ser desta ou daquela forma são precisamente tudo que humanos têm a oferecer quando se trata de animais. Não passa de "Eu gosto de bacon" e "O porco é meu porque eu o capturei e me declarei dono". Mas o FATO, objetivo, ainda é que o próprio porco é o primeiro —e único— ocupante e controlador direto do respectivo corpo.

Verificabilidade do link objetivo de controle direto
Uma vez entendido que a autopropriedade tem como marco inicial o link objetivo de controle direto, pode ser formulada uma questão sobre a verificabilidade desse link. Algo como "bem, animais podem até ser os controladores de seus corpos, mas como eles provariam isso? hehe que pena". Afora a capenguice intelectual de considerar ausência de prova como prova de ausência, quero destacar que mesmo se um animal não possa ele próprio demonstrar (num sentido filosófico-argumentativo) algo, isso não significa que nós ainda não possamos verificar esse algo por nós mesmos.

De fato, Hoppe fala em termos de um link objetivo intersubjetivamente verificável. Entendamos o que esses dois termos significam:

Sobre a verificabilidade, o link precisa ser verificável, não "demonstrável pelo próprio linkado" nem "já demonstrado por ele". A questão então é se o link é verificável, não se o próprio interessado tem capacidade de executar no aspecto filosófico essa demonstração.

Também não se trata de um link "intersubjetivamente verificado". Isso significa que o link não precisa ter sido verificado entre sujeitos para ter significância, mas que ele possa sê-lo

Na verdade, dado que é possível fazer proposições "como pensamento interno" para "convencer a si próprio", como o próprio Hoppe reconhece, não é necessário sequer mais do que o próprio sujeito pensando consigo mesmo para se concluir pela significância do link. E, principalmente, não há necessidade do envolvimento de mais de um sujeito também para a verificabilidade da existência dos respectivos controles entre dois ou mais sujeitos.

Vejamos. Segundo Hoppe, a resposta para a questão de o que faz o meu corpo "meu" repousa no óbvio fato de que isto não é apenas uma asserção mas que, à vista de qualquer um, esse é realmente o caso. E esse será o caso conforme o corpo em questão expresse ou "objetifique" a vontade daquele ser. A verificação desta expressão de vontade, sugere Hoppe, pode ser feita da seguinte forma:
"Quando eu anuncio que vou levantar meu braço, virar minha cabeça, relaxar na minha cadeira (ou o que seja) e esses anúncios em seguida se tornam verdade (são cumpridos), então isto mostra que o corpo que fez isso foi de fato apropriado pela minha vontade. Se, ao contrário, meus anúncios não mostrassem nenhuma relação sistemática com o comportamento efetivo do meu corpo, então a proposição "esse é meu corpo" teria que ser considerada como uma asserção vazia e objetivamente infundada; e da mesma forma essa proposição deveria ser rejeitada como incorreta se em seguida ao meu anúncio não apenas meu braço se erguesse, mas também sempre os braços de outras 3 pessoas (nesse caso alguém provavelmente estaria inclinado a considerar os corpos dessas outras 3 pessoas como "meus")."
O que Hoppe parece não ter percebido é que essa demonstração não só permite encontrar o que é meu, mas também e necessariamente aquilo que não é meu. Os limites do meu controle não trazem conclusões só "para o lado de dentro", sobre o que eu controlo diretamente, mas também "para o lado de fora" do limite: demonstrando o que eu não controlo diretamente. Quando faço a prova da extensão do meu controle direto, isso já me diz também que os braços das outras 3 pessoas não estão sob o meu controle direto!

Se observamos que estes braços (ou qualquer outra coisa) não exibem qualquer comportamento, então obviamente não pode haver qualquer entidade exercendo controle direto sobre eles, e portanto eles podem ser apropriados, isto é, passarem a ser controlados (controle indireto) pela vontade de alguém.

Mas se exibem comportamento, então há alguma vontade envolvida. Além de possuírem atributos, como seus corpos, seres animados, por definição, exibem comportamentos (ao contrário dos inanimados, que só possuem atributos). Ora, mas se os comportamentos dos seres animados ocorrem e não são controlados por mim, a única conclusão é que existe outra entidade que o controla diretamente, conforme a vontade dela, que não é a minha. Se ela é a controladora direta, só ela pode ser a proprietária, não eu.

Assim, concluindo, a verificação de quais comportamentos estão sob controle direto da minha vontade já implica necessariamente na demonstração de que outros comportamentos estão sob controle direito de outras vontades, que não a minha, dispensando assim qualquer esforço filosófico adicional de demonstração por parte delas frente a mim. Ou seja, mesmo que animais não possam apresentar a verificação, eles próprios, qualquer um pode executar tal verificação sozinho.

Com esta conclusão, podemos encerrar em definitivo todos os argumentos que negavam direitos apelando para uma suposta necessidade de o próprio agente provar seus direitos para tê-los e que animais (bem como bebês ou retardados) não conseguiriam cumprir tal necessidade. Com o raciocínio desenvolvido aqui, fica evidente que tal verificação pode ser feita individualmente, não necessitando de qualquer ação de terceiros para ser realizada, sendo desimportante, assim, se eles próprios podem ou não fazê-la.

Uso (ou controle direto) enquanto ação - algo exclusivo dos humanos?
Esclarecidas as questões quanto à verificabilidade do controle direto, podemos lidar então com o argumento de que controle é feito por meio de ação, mas que animais seriam incapazes de agir. "Ação" aqui faz referência às considerações de Ludwig Von Mises, em seu livro "Ação Humana". Apesar de, logo de cara, Mises já ter intitulado seu trabalho como "ação humana", observemos quais são os pré-requisitos que ele levanta para caracterizar uma ação e vejamos se eles só dizem respeito mesmo a humanos:
"O agente está ansioso para substituir uma situação menos satisfatória por outra mais satisfatória. Sua mente imagina situações que lhe são mais propícias, e sua ação procura realizar esta situação desejada. O incentivo que impele à ação é sempre algum desconforto. Mas, para fazer um ser agir não bastam o desconforto e a imagem de uma situação melhor. Uma terceira condição é necessária: a expectativa de que um comportamento propositado tenha o poder de afastar ou pelo menos aliviar o seu desconforto."
Suponha um cachorro que num dia frio resolve ir pro meio das cobertas. Ele vislumbrou a imagem de uma situação melhor (se aquecer) e, com a expectativa de que o comportamento propositado de ir pras cobertas teria o poder de afastar ou pelo menos aliviar o seu desconforto, foi isso que ele fez, Este evento incorporou os 3 requisitos da ação, logo não há porque declarar que tal cachorro não teria AGIDO.


Pode haver algum questionamento quanto ao comportamento do animal se tratar realmente de algo propositado. Diz-se "propositado" um comportamento que tenha sido feito com algum fim: o comportamento do cão evidentemente foi feito tendo em vista o fim de que ele se livrasse do desconforto causado pelo frio. Não fosse o comportamento desempenhado propositadamente, o animal reagiria de forma simplesmente aleatória frente a um mesmo desconforto: hoje pode ser que ele vá para as cobertas, amanhã pode ser que ele pule na tigela de água, no outro dia, comece a roer a própria perna e etc. Não é o que ocorre. Uma vez entendido a vínculo entre um comportamento e seus resultados, o animal (incluindo os animais da espécie humana) o executará propositadamente para alcançar situações mais satisfatórias. O propósito da ação também é revelado quando observamos o comportamento de frustração ou confusão que observamos no animal quando ele tenta algo e não consegue: ora, tais comportamentos só fazem sentido a partir do momento em que havia uma propósito na ação, que não foi atingido. Confusão e frustração demonstram quebra de expectativa, e só pode manifestar tal comportamento quem já tinha uma expectativa de início.

O que Mises descreveu não foi exatamente "ação humana", nem mesmo a ação racional como um todo, mas algo como a "função cerebral econômica" - e mesmo animais, naquilo que são capazes de desempenhá-la, se comportam conforme tal função, inclusive.

Tão logo aprendam que um objeto pode ser trocado por outro, por exemplo, animais se comportam de acordo com os princípios praxeológicos, revelando por exemplo possuírem uma escala de preferência e agindo segundo ela. Você pode constatar isso ao assistir o experimento abaixo, em que o macaco protesta efusivamente por receber, por igual moeda, um bem inferior ao de outro colega:


As diferenças entre humanos e animais, naquilo que diz respeito às ações, parecem ser mais quantitativas do que qualitativas. Nós conseguimos considerar mais variáveis ("imaginar mais situações que lhe são mais propícias"), fazer cálculos mais complexos entre elas, apreender mais relações de causa e efeito no mundo, mas é só isso.

Ação propositada
Se a ideia é que direitos de propriedade se aplicam apenas para aqueles que agem, os animais continuam  incluídos, pois claramente desempenham ações.

Uma última observação: as considerações de Mises sobre a ação se deram numa esfera econômico-descritiva, não ética. Quando Hoppe identificou a argumentação como incluída na categoria da ação, o efeito disto é simplesmente que o método da ética argumentativa passou a desfrutar do mesmo status axiomático/inegável da economia (praxeologia) miseana, e não que as normas validadas pela ética argumentativa só se estenderiam a quem é capaz de agir.


Com as considerações deste post e dos anteriores, espero ter demonstrado que os argumentos dos autores libertários popularmente levantados não nos permitem excluir animais de direitos, ou alegar que eles estejam excluídos de considerações éticas. Muito pelo contrário, aliás, a análise que fizemos da proposta libertária aponta para a validade de suas disposições éticas de tal forma que ativamente desautoriza agressões a animais. Podemos, por fim, formular de fato um argumento positivamente em prol dos direitos dos animais da seguinte forma:

1. A validade da norma de que o primeiro usuário seja o dono (autoproprietário) é inegável (conforme o raciocínio da Ética Argumentativa)
2. O animal é o primeiro usuário do respectivo corpo
3. Logo, ele é o dono daquele corpo (autoproprietário)
4. É impossível justificar agressão ao dono, pois isso envolveria negar a norma da autopropriedade. Mas, como em (1), ela é inegável
5. O animal é o dono
6. Agressão ao animal é injustificável.


Se a Ética Argumentativa não só fracassa em negar direitos a animais, como na verdade oferece um paradigma para demonstrá-los, haveria então alguma outra proposta a recorrer? No próximo post, Ética e direitos animais (4) - Resposta a Molyneux analisaremos a proposta do libertário Stephan Molyneux, em seu Universaly Preferable Behaviour.

No último post da série, estão as respostas para algumas perguntas comuns, sobre as implicações práticas da conclusão pelos direitos dos animais, especialmente sobre responsabilização de agentes.


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Mais sobre o corvo: no vídeo a seguir ele conhece as tarefas individuais, e pela primeira vez precisa combiná-las da forma correta para conseguir o objetivo. 

Ética e direitos animais (2) - Crítica à conclusão hoppeana


No artigo anterior, Crítica à abordagem jusnaturalista, foram demonstradas as falhas desta abordagem para a negação de direitos aos animais. No presente artigo, tentarei fazer igual demonstração, agora em relação às conclusões da abordagem jusracionalista/'argumentativista" de Hans-Hermann Hoppe.

Note que, enquanto o artigo anterior era uma crítica à abordagem jusnaturalista, como um todo, este artigo é uma crítica à conclusão hoppeana; apontarei que, assumindo a ética argumentativa como válida, a negação de direitos a animais com base nela está incorreta.

Note também que, embora esse artigo esteja no contexto dos direitos dos animais, as conclusões aqui são válidas para a ética argumentativa em geral, incluindo as controvérsias relativas a outros não-argumentadores, como deficientes mentais e bebês.

Comecemos então com uma breve introdução à ética argumentativa:

Em seu artigo The Ultimate Justification of the Private Property Ethic, Hoppe parte da observação de que toda norma, ao ser justificada, terá tal justificação feita proposicionalmente, i.e. argumentativamente. Em outras palavras: sempre que a questão do justo for levantada, sempre que uma norma for defendida como justa ou injusta, essa justificação será feita por meio de uma declaração, será uma defesa argumentativa: alguém estará dizendo que algo é justo ou não.

Também é observado pela ética argumentativa que tal justificação já pressupõe certas normas (as "normas do discurso") como válidas:
“ao afirmar qualquer proposição, abertamente ou como um pensamento interno, alguém demonstra sua preferência em depender de meios argumentativos para convencer a si mesmo ou aos outros de alguma coisa."
Em seguida, Hoppe inteligentemente pontua que:
"Ninguém poderia propor nada, e ninguém poderia ser convencido de uma proposição por meios argumentativos, se o direito de se fazer uso do próprio corpo físico já não fosse pressuposto."
Assim
“Qualquer um que tente justificar qualquer norma com qualquer conteúdo já deve pressupor um direito exclusivo de controle sobre seu corpo simplesmente para dizer "eu proponho isso e aquilo". E qualquer um que dispute tal direito, seria pego numa contradição prática, já que ao argumentar isso, esse alguém já estaria aceitando implicitamente a própria norma que tenta negar."
A contradição prática de que Hoppe fala é também referida, mais comumente, como "contradição performativa" ou "contradição performática".

Em resumo, a abordagem da ética argumentativa nos diz que
(a) Justificação (como a necessária para justificar uma norma ética) é justificação feita argumentativamente;
(b) Uma argumentação, para ser feita, já pressupõe que certas normas do discurso são válidas (para Hoppe, a autopropriedade e o princípio do homesteading são as normas que qualquer argumentação já pressupõe como válidas);
(c) A validade destas normas é inegável. Pois, ao tentar justificar normas que contrariem as normas do discurso, o argumentador cairia numa contradição performativa: estaria tentando alegar a invalidade de uma norma ao mesmo tempo em que o ato dele já requer e demonstra a validade de tal norma.

A partir desse raciocínio, muitos (incluindo o próprio Hoppe) acreditam que segundo a ética argumentativa apenas seres que tenham "capacidade de argumentação" teriam o direito de não serem agredidos.

Essa conclusão está errada, e tentarei demonstrar a seguir o porquê.

- O papel da argumentação (ou da "capacidade de argumentação") na ética argumentativa:
A ética argumentativa propõe apenas que a validade de certas normas é pressuposta —isto é, vem antes da prática do discurso e que essa validade é inegável por meio de discursos. Só isso, nada além disso. Você pode confirmar relendo a introdução deste artigo.

Essa impossibilidade de negar a validade da norma é atemporal e universal, portanto a validade desta norma é atemporal e universal.

Assim, a ética argumentativa não propõe que certas normas são válidas "por causa da existência de discursos" nem que sejam válidas "durante a prática de discursos", nem que sejam válidas "para indivíduos conforme eles sejam capazes de discursar sobre elas", tampouco diz que as normas são válidas "em relação a indivíduos capazes de discursar". Ela nos diz simplesmente que a validade de certas normas é inegável.

A capacidade argumentativa é, sem dúvida, necessária para alegar que uma norma seja ou não justa. Mas não existe —ou pelo menos ninguém mostrou que exista— uma implicação entre o fato de a argumentação ser necessária para apresentar tal justificação de normas éticas e entre isso significar que estas normas só digam respeito a condutas em relação a argumentadores. Tomemos um exemplo mais neutro: alguém que afirme "eu estou morto" estaria cometendo uma contradição performativa, já que para se fazer tal afirmação é necessário estar vivo. Nem por isso concluímos que "só quem é capaz de argumentar tem vida" ou que "ser capaz de argumentar é requisito para ter vida". Da mesma forma, não é válido concluir que, porque é necessário argumentar para justificar direitos, só quem os justifica os tem, ou que seja necessário ser capaz de argumentar para tê-los.

A capacidade argumentativa só seria um requisito para ter o direito de controle exclusivo sobre algo caso esse direito precisasse ser afirmado para ser válido a quem o afirmou. Não é o caso. O direito de controle exclusivo de qualquer um é considerado válido conforme seja inegável, e não "conforme seja afirmado". É a tentativa de negar ou afirmar (argumentativamente) a validade de tal direito que requer capacidade argumentativa para ser feita; não a participação em tal direito ou o usufruto dele.

Em outras palavras, numa ética argumentativa, a argumentação aparece como um elemento de validação de normas éticas, e não de produção delas nem de participação nelas. A argumentação desempenha o papel como o de uma régua, um gabarito para dizer quais normas são válidas e quais não. Afirmar que tais normas só digam respeito a quem é capaz de argumentar é tão infundado quanto dizer que a característica "altura" só diz respeito a quem for capaz de fazer medições com fita métrica.

- Ética argumentativa ou "Ética argumentada"?
A ética argumentativa hoppeana nos traz parâmetros objetivos e inegáveis: justificação (como a necessária para normas éticas) é justificação argumentativa; somente uma norma justificável argumentativamente pode ser válida; não haveria como justificar argumentativamente a violação à autopropriedade de terceiros; e autoproprietário é aquele que tem o link objetivo de primeiro uso.

Ao mesmo tempo, porém, os defensores da ética argumentativa passam a tratá-la não como justificação argumentativa, mas como uma "Ética argumentada", uma ética em que argumentadores se sentarão em círculo e produzirão uma ética a partir de seus argumentos, até chegarem a um acordo argumentado, o qual fornecerá a resolução para o conflito.

Mas a ética argumentativa já nos diz qual é a única norma válida, então que diferença acordos fazem? Nenhuma. Se chegássemos a um acordo de que eu posso pegar suas coisas sempre que eu quiser, mesmo que você não queira, a ética argumentativa ainda diria que a situação desse acordo é injustificável, porque estaria violando as únicas normas de validade inegável.

Dito de outra forma: a verdade, qual seja, de que agressão é injustificável, uma vez encontrada, (como aconteceu assim que você leu este post) dispensa sucessivas novas argumentações a cada caso para ser "reencontrada". O sujeito já sabe que a agressão é injustificável. Portanto, já deve se comportar de acordo com a norma da não-agressão independentemente de se engajar em novas argumentações com a próxima vitima.

Sendo novas argumentações desnecessárias, então a vítima não precisa argumentar nada e por isso continua não fazendo sentido exigir que ela seja capaz disso para só aí sabermos que ela deve ser respeitada.

- A questão entre meramente evitar contradição performativa e entre estar de fato justificado argumentativamente:
E que tal o seguinte argumento: se o outro lado não puder argumentar, então qualquer um poderia fazer qualquer coisa em relação a ele pois, como sequer teria feito algum argumento em relação a esse outro, então não cairia em contradição performativa. Hoppe também parece apelar para tal ideia quando diz que não se deve esperar que uma pessoa dê qualquer resposta para um outro que jamais fez alguma pergunta[1].

Se por um lado, alguém sempre pode dizer que, por não argumentar com outros, ele jamais cairá em contradição performativa frente a eles, por outro lado, o que esta pessoa esqueceu é que abster-se de argumentar ainda não significa que suas ações sejam argumentativamente justificáveis.

Permita-me enfatizar isso:
Abster-se de argumentar livra alguém de cair na contradição performativa, mas não significa que suas ações sejam argumentativamente justificáveis.

Se assim fosse, qualquer um poderia já chegar matando alguém e quando questionado simplesmente dizer "eu não fiz argumento nenhum de nada com ninguém então não houve contradição performativa, logo estou justificado argumentativamente hue hue lance limpo segue o jogo". Se fosse, mas não é.

O fato de você não argumentar com um terceiro, seja porque você não quis ou porque ele mesmo é incapaz de argumentar algo, não implica que você já está automaticamente justificado argumentativamente em fazer o que quiser com ele nem com ninguém. Apenas ao desempenhar ações justificáveis argumentativamente é que você estará justificado de fato.

Mas como escreveu Frank Van Dun[2]:
"Ninguém pode argumentar consistentemente que meios argumentativamente injustificáveis de lidar com outros devem prevalecer; portanto não pode haver justificação alguma àquele que recorrer a tais meios de lidar com outros."
E nas palavras de Hoppe:
"Afirmar que a regra de primeiro-usuário-primeiro-dono do libertarianismo pode ser ignorada ou é injustificada implica numa contradição".
Van Dun e Hoppe não acham que animais estão incluídos nas normas de não-agressão, mas observe que as declarações citadas de cada um deles pretendem ser válidas universalmente. O fato de que "não pode haver justificação a meios injustificáveis de lidar com outros" permanece independentemente de quem sejam esses outros. A contradição de dizer que a regra do primeiro-usuário-primeiro-dono pode ser ignorada não desaparece para alguns usuários.

Ora, se é impossível afirmar a invalidade da norma de primeiro-usuário-primeiro-dono ou que ela pode ser ignorada, então a questão se resume a: que reivindicação VOCÊ, nobre argumentador, pode fazer para ser você o dono do corpo de um animal? Que link objetivo você tem pra reivindicar sobre o corpo de um animal que seja melhor que o primeiro uso que ele mesmo já faz do próprio corpo? Se você não tem link melhor, então não pode estar justificado em se declarar dono dele, ou fazer o que quiser com ele.

- Capacidade argumentativa e o Argumento Finalístico da propriedade
Defensores dessa linha tentam salvar a exigência da "capacidade argumentativa" ressaltando que direitos de propriedade existem com a finalidade de que sejamos capazes de, com eles, resolver pacificamente conflitos por meio de argumentações. Assim, aquele que não é capaz de argumentar, não poderia desempenhar essa finalidade e portanto estaria fora do universo dos direitos de propriedade.

O argumento finalístico pode ser formulado assim:
"a capacidade de argumentação é que confere ao possuidor de algo o direito de possuí-lo pois é ela que o torna capaz de pacificamente resolver conflitos advindos dos recursos escassos que precisa para sobreviver"

Em primeiro lugar, eu não preciso ser capaz de resolver pacificamente conflito nenhum para ter direito ao que é meu. No momento do conflito eu já terei sido o primeiro que usou aquela coisa, portanto ela já será minha. Uma vez que o conflitante já se caracteriza como agressor objetivamente, (pois nem ele nem ninguém pode invalidar a norma de primeiro-uso-primeiro-dono e eu sou o primeiro usuário), eu não preciso convencê-lo pacificamente de nada, já estando justificado em usar a força para defender o que é meu.

Em segundo lugar, a questão é que se pode não só resolver conflitos como também se pode EVITÁ-LOS (evitar iniciá-los) usando o conceito de propriedade, e de fato fazemos isso a maior parte do tempo, argumentando conosco mesmo ("como um pensamento interno", "convencer a si mesmo" na expressão de Hoppe). E o que é "usar o conceito de propriedade"? É justamente analisar, tendo por base que a única proposição justificável é a da autopropriedade e do homesteading (primeiro-uso-primeiro-dono), quem estaria justificado no eventual conflito: se esse alguém não é você, não inicie o conflito. Ponto.

A partir do parágrafo acima, fica bastante fácil entender o erro de Hoppe no trecho a seguir[3]:
"Suponha, em meu cenário anterior de Crusoé e Sexta-Feira, que Sexta-Feira não fosse o nome de um homem, mas de um gorila. Obviamente, assim como Crusoé poderia se envolver em conflitos com Sexta-Feira, o homem, em relação a seu corpo ou ao local que ocupa, poderia se envolver da mesma forma em conflitos com Sexta-Feira, o gorila. O gorila pode querer ocupar o mesmo espaço que Crusoé já ocupa. Nesse caso, pelo menos se o gorila for do tipo de ente que gorilas são conhecidos por serem, não haveria uma solução racional para o conflito."
Mas é claro que existe uma solução racional para o conflito. É a regra de primeiro-usuário-primeiro-dono, a única regra justificável. O que pode não existir é uma "solução racionalmente negociada", mas a ética argumentativa não se presta a negociações, por não se tratar de uma "ética argumentada", como comentado anteriormente. Outra coisa que pode não existir é o conhecimento acerca de tal solução racional, por parte de algum ou de todos os envolvidos no conflito — como é o caso de Sexta-Feira, o gorila. Mas a solução racional permanece a mesma. Segue Hoppe:
"Ou o gorila iria acossar, esmagar e devorar Crusoé - essa seria a solução do gorila para o problema -, ou Crusoé iria domar, caçar, abater ou matar o gorila - essa seria a solução de Crusoé."
Não existe "solução de fulano" ou "de beltrano" para o problema. Existe a solução ética, racional e justificável e existem "coisas que indivíduos vão fazer". Se determinado indivíduo, seja ele um gorila ou um assaltante qualquer, só vai interagir na base da violência, isso não significa que a solução racional desapareceu. Ainda teremos alguém que iniciou a agressão —e que está do lado injustificável, portanto—, e alguém que se defendeu dela —que está do lado justificável, portanto. O fato de que Crusoé está justificado quando/se o gorila o atacar não torna Crusoé justificado se em vez disso ele próprio for lá atacar o gorila.

Dessa forma, se você segue esta linha finalista e tem a pretensão de evitar conflitos, não importa se o outro teria ou não a capacidade de fazer essa análise —  ora, se VOCÊ tem, VOCÊ já pode fazê-la e lidar com o conflito, descobrindo se está justificado ou não. Se não está, não inicie o conflito.

Ao ignorar o uso de alguns proprietários, o finalista está deliberadamente recusando pensar pela propriedade. Ele está escolhendo prevalecer em conflitos com outros à margem do que ela nos justifica e à margem das soluções que ela tem a oferecer: ele está se recusando a aplicá-la para cumprir a finalidade que ele mesmo afirmava embasá-la. 

- O argumento da apropriação e sobrevivência na ética argumentativa
Convém esclarecer uma confusão que poderia surgir a partir do seguinte trecho:
"seria igualmente impossível a alguém sustentar a argumentação por qualquer período de tempo e contar com a força proposicional dos próprios argumentos, se ele não fosse autorizado a apropriar-se, além de seu próprio corpo, também de recursos escassos por meio da ação de homesteading, i.e., ao colocá-los em uso antes que qualquer outro o faça, ou se tais recursos, e os direitos de controle exclusivo em relação a eles, não fossem definidos em termos físicos objetivos. 
Pois se ninguém tivesse o direito de controlar coisa alguma, exceto seu próprio corpo, então todos nós deixaríamos de existir e o problema de justificar-se normas —bem como todos os problemas humanos— simplesmente não existiriam. Portanto, o fato de que alguém está vivo pressupõe a validade do direito de propriedade sobre outras coisas. Ninguém que está vivo pode argumentar o contrário."
À primeira vista, pode parecer que o argumento hoppeano é que "para que seja possível sustentarmos argumentação, então devemos ter direitos". Essa parece ser a leitura que muitos têm desse trecho. Se fosse esse o caso, estaria aí realmente uma demonstração da necessidade da capacidade argumentativa para se ter direitos: de fato, aqueles incapazes de sustentar argumentação não precisariam de direito algum, se é pra possibilitar argumentação que eles servem, Mas a ética argumentativa não propõe direitos "para que seja possível a argumentação"; o que foi demonstrado é que precisa-se de direitos para sobreviver e que esses direitos são válidos porque são inegáveis (por meio da argumentação) por qualquer um que esteja vivo.

Aliás, como bem apontado por Rafael Ritter, com base nesse trecho poderíamos formular um primeiro silogismo capaz de efetivamente demonstrar os direitos de propriedade dos animais (o silogismo definitivo está no próximo artigo):

1- O fato de que alguém está vivo pressupõe a validade do direito de propriedade sobre outras coisas; 
2- Ninguém que está vivo pode argumentar o contrário de 1;
(Observe que, em 1, é o fato de que alguém "está vivo" que pressupõe o direito de propriedade; não o fato de que alguém "é capaz de argumentar que está vivo" que pressupõe o direito)
3- Animais estão vivos;
4- Portanto, a validade da propriedade para animais está pressuposta (e ninguém pode argumentar contra isso).

Conclusão e uma definição mais consistente de direito no contexto da ética argumentativa
Expressões como "ter direitos" mais confundem do que ajudam, e parecem vícios de linguagem herdados do pensamento jusnaturalista, o qual enxergava direitos inscritos na "natureza" dos seres. Mas direitos não são atributos que seres têm ou deixam de ter em suas naturezas.

A ética lida com a questão do que é o justo. A abordagem da ética argumentativa, mais especificamente, trata de quais normas são justificáveis. Dessa forma, o que alguém "tem" de direito é apenas um reflexo das coisas que outros não estarão justificados se fizerem em relação a ele.

Assim, o direito de autopropriedade significa simplesmente que ninguém conseguiria justificar uma norma que invalidasse o direito exclusivo de controle de alguém sobre o corpo, por exemplo. Na medida em que é impossível justificarmos argumentativamente agressão, se não podemos fazer nenhuma reivindicação melhor de uso do que o primeiro uso de outros, etc. é nisso que se constituem os direitos desses outros.

Nada disso deixa de valer conforme características destes outros, uma vez que eles sejam os usuários de algo, a norma é clara (e, segundo Hoppe, inegável): o primeiro usuário é o primeiro dono. Dessa forma, e resumindo: se Hoppe diz que "o direito de controle sobre o próprio corpo é inegável", minha alegação nesse artigo é que esse direito é inegável para animais pelo mesmo motivo que é inegável para humanos: porque qualquer um que tentasse negá-lo cairia em contradição.



Expus ao professor Hoppe a crítica com base nas ideias deste artigo. Você pode ler a interação que tivemos, via email, neste post: Hans-Hermann Hoppe vs Luiz Fabrette - Sobre Ética Argumentativa e não-argumentadores


Por fim, na empreitada de negar direitos a animais, o último recurso será afirmar que animais então não controlam ou não fazem uso de seus corpos. Esse será o argumento debatido no próximo post.


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[1] e [3] Extraídos de A ética e a economia da propriedade privada.

[2] Extraído de Comment on R.P.Murphy’s & Gene Callahan’s Critique of Hans-Hermann Hoppe’s Argumentation Ethics.

Posso ser funcionário público sendo libertário / liberal?


Muita gente tem essa dúvida, então vão aí 6 pontos para respondê-la:

1- Você deixar de ocupar o cargo público não fará ele desaparecer. Apenas será ocupado por outro. Sua recusa não vai aumentar nem diminuir o estado;

2- Essa outra pessoa que entraria é, em tese, menos capacitada que você (afinal ela teria ficado fora das vagas): ao assumir a vaga, você está preenchendo o estado com pessoas mais eficientes que poderão prestar um serviço melhor. Isso é bom para o público;

3- É melhor encher o serviço público de liberais que se sentem culpados e tentam ser o mais eficientes possível do que de estatistas que se acham no direito de serem folgados e burocráticos;

4- Se o seu cargo consistir basicamente em seguir regras inúteis e burocráticas que atrapalham a vida das pessoas, a não ser que você pretenda trabalhar sabotando esse sistema, então é mais coerente procurar um cargo cujas atividades sejam equivalentes ao que você faria se fosse na iniciativa privada (a maioria dos cargos desempenha atividades assim, como ser atendente bancário, professor, bibliotecário...);

5- Você pode, no mínimo, contribuir para o estado não aumentar, mesmo sendo servidor público: Se você entrar no serviço público e propuser formas de executar o trabalho de forma mais eficiente, a quantidade atual de funcionários vai desempenhar o trabalho com folga - já que funça nunca é demitido - mas isso significa que não haverá motivos para os chefes ficarem requisitando mais servidores. Ou seja, você fez sua parte para o estado não crescer. 

6- Só, por favor, não vá aderir a greves no serviço público. Se está insatisfeito com a remuneração, troque para um emprego que te pague o que você julga que seu trabalho vale, oras.