Hans-Hermann Hoppe vs Luiz Fabrette - Sobre Ética Argumentativa e não-argumentadores


O seguinte diálogo ocorreu numa troca de emails entre mim e o professor Hoppe em junho de 2017. Também está disponível  o original em inglês da conversa.


Fabrette: Tenho uma pergunta sobre o apriori da argumentação e a sua alegação de que Apenas se a outra entidade puder em princípio pausar sua atividade e dizer "sim" ou "não" a algo nós devemos a essa entidade alguma consideração moral, por assim dizer.

A verdade —qual seja, de que agressão é injustificável—, uma vez encontrada (como aconteceu quando lemos seu livro, por exemplo) dispensa sucessivas novas argumentações a cada caso para ser "reencontrada". Devido ao apriori da argumentação, o sujeito já sabe que a agressão é injustificável, em definitivo. Portanto, se ele deseja que suas ações sejam justificáveis, ele já deve se comportar de acordo com a norma da não-agressão independentemente de se engajar em novas argumentações com a próxima vitima.

Assim, sendo novas argumentações desnecessárias, então a vítima não precisa argumentar nada — e por isso continua não fazendo sentido exigir que ela seja capaz de argumentar para só aí sabermos que ela deve ser respeitada e um "sujeito de direitos".

Claro, a vítima precisa ser capaz de manifestar de alguma maneira que o que alguém está fazendo é contra a vontade dela. Ok, mas nós podemos fazer isso de formas não-argumentativas, como tentar escapar de um ataque, gritar, resistir fisicamente, e daí em diante, não necessariamente apenas ao declarar verbalmente "Com licença, senhor, mas eu não aprovo isto" de uma maneira estritamente argumentativa.


Fabrette: Parece que a resposta principal à minha questão neste link é essa:

"Sempre que uma pessoa se recusar a entrar numa argumentação, não é devido a ela nenhum argumento em troca."

Sim, àquela pessoa pode não ser devido nenhum argumento de volta, mas isso não significa que qualquer coisa que fizermos com essa pessoa será justificável. Digamos, a criancinha gritando "não" para tudo que é dito a ela citada no link: talvez nós não devamos mesmo nenhum argumento a ela, mas então poderíamos simplesmente matá-la ou escravizá-la, i.e., seriam essas ações justificáveis?

Hoppe: Não, é claro que não.

Fabrette: (Nesse caso particular da criança você deve ter outra solução, provavelmente baseada em a criança ser uma "potencial argumentadora". Não acho que essa é uma solução válida, mas deixemos isso de lado. Penso que a solução real para o caso da criança está no seguinte:)

Se é uma verdade transcendental que agressão é injustificável, então essas ações contra a criança não poderiam nunca ser justificáveis — você não conseguiria justificá-las nem a si mesmo, como um pensamento interno.

Hoppe: Certo

Fabrette: Pensar que se uma vítima em particular não pode argumentar então podemos fazer qualquer coisa com ela seria o equivalente a pensar que "a verdade é verdade só para as partes de fato envolvidas na argumentação" — de forma que se a parte vítima não está envolvida em argumentação então a verdade "agressão é injustificável" desapareceria, como se ela não tivesse relevância fora de argumentações. Bem, mas ela tem. É porque, conforme o texto no link, "verdades têm relevância fora do contexto de argumentações" que nós não podemos ignorá-las nem mesmo em relação a vitimas não-argumentadoras.

Hoppe: Certo

Fabrette: "Ele simplesmente não conta como uma pessoa racional em relação à questão ou problema em análise. Ele é tratado como alguém a ser ignorado no assunto. De fato, alguém sempre, em princípio, recusando-se a justificar argumentativamente qualquer de suas crenças ou ações contra outros, não seria considerado nem tratado como uma pessoa de jeito nenhum". [trecho extraído do link indicado pelo Hoppe]

Isso pode estar descritivamente correto, mas não é eticamente justificável: sim pessoas podem considerar e tratar não-argumentadores como sujeitos fora de consideração ética, mas todo o raciocínio em relação ao apriori da argumentação e sua transcendentalidade parece apontar que elas estão erradas em agir assim.

Hoppe: Note que eu falei em relação à mera recusa em defender argumentativamente qualquer coisa, nem sequer chegando a assassinato, estupro, etc.... só com a recusa ele já seria considerado um ser selvagem, a ser tratado como tal.

Fabrette: Notei uma distinção importante nessa última parte. Eu havia lido pensando em "vítimas não-argumentadoras", mas você estava falando de algo como um "agressor não-argumentador", é isso?

Então, apenas alguém que se recuse a defender argumentativamente qualquer coisa, como um AGRESSOR não-argumentante, seria um "ser selvagem a ser tratado como tal". Mas não um não-argumentante pacífico, nem um não-argumentante vítima que seja incapaz de argumentação: nossas ações em relação a eles ainda estariam sujeitas a justificabilidade ética/argumentativa. Certo?

Hoppe: sim

Fabrette: Então, se nossas ações em relação a vítimas não-argumentadoras que são incapazes de argumentação ainda estariam sujeitas a justificabilidade ética/argumentativa, por que iniciar agressão contra Sexta-Feira, o gorila, seria menos injustificável do que iniciar agressão contra a criancinha gritando? Sendo ambos, a criança e Sexta-feira, o gorila, vítimas não-argumentadoras que são incapazes de argumentação...

Hoppe: crianças são argumentadoras em potencial, gorilas não (portanto, eles representam meros problemas técnicos de controle)

Fabrette: Sim, "crianças são argumentadores em potencial e gorilas não são", essa frase é verdadeira, mas ela seria uma resposta válida à pergunta somente se verdades, como a injustificabilidade da agressão, fossem relevantes apenas no contexto da argumentação. Se esse fosse o caso, então faria sentido requerer que uma vítima fosse uma argumentadora, ou pelo menos uma em potencial, porque somente assim essa vítima poderia ser uma participante no contexto onde tal verdade tem relevância.

Se fosse, mas não é! Nós acabamos de estabelecer o porquê de nossas ações mesmo contra não-argumentadores completos ainda serem sujeitas a justificabilidade ética: porque verdades têm relevância fora do contexto da argumentação! Não-argumentadores, de fato, não podem nunca estar dentro do contexto da argumentação, mas isso não deveria fazer diferença alguma, desde que a verdade também tem relevância fora do contexto da argumentação.


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Em sua última mensagem, Hoppe disse que se ausentaria para "longas viagens". Deixei esta última resposta, de todo jeito, e se ele responder quando retornar, adicionarei a resposta dele aqui. Entretanto, penso que, a essa altura, não há nada que ele possa responder que vá justificar a iniciação de agressão contra uns e não contra outros.

Caso deseje ler mais sobre o assunto, veja minha série sobre Ética e Direitos Animais. Embora esteja escrita no contexto dos direitos animais, ela lida com uma das questões mais fundamentais da Ética — o que torna alguém um sujeito de direitos? — e as respostas são válidas para qualquer dos outros casos complexos, como recém-nascidos, velhos senis e etc.

3 comentários:

  1. Nocaute, Fabrette! Parabéns por botar o Hoppe contra a parede nesse assunto.

    Procuro não ser maniqueísta, reconheço tudo que intelectuais brilhantes como Olavo de Carvalho e Hans Hermann Hoppe fizeram pela filosofia. Mas também não deixo de apontar as bobagens que eles falam.

    Abraço!!!

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  2. O argumento da impossibilidade de aplicação não é válido, pois uma atitude pode ser ética e impraticável em determinado momento histórico, dadas as limitações técnico-científicas. Um bom exemplo é o da propriedade privada que é fundamentada na ética argumentativa como algo imprescindível para a solução de conflitos. No entanto, ainda que essa ética seja universalmente aplicável, grupos de humanos coletores durante o paleolítico, por exemplo, achariam - se pudessem discutir direitos- impraticável o ato de privatizar terras, dado que era mais vantajoso, nesse momento prévio à existência da agricultura e da pecuária, abandoná-las quando os recursos naturais estivessem por acabar e partir em busca de outras regiões, o que seria impraticável se cada grupo de humanos exercesse domínio sobre suas terras ao possível primeiro contato, o que provocaria, e pode ter provocado de fato, guerras atrozes, de modo a inviabilizar as civilizações posteriores. Nesse sentido, vê-se a inaplicabilidade momentânea de uma regra ética, o que não a torna seletiva e momentaneamente válida, mas aplicável a partir de quando os grupamentos humanos dominaram a agricultura e a pecuária e, assim, seria melhor que houvesse propriedade privada, pois construir infraestruturas para viver como nômade também era inviável. Logo, percebe-se que a propriedade privada foi estabelecida por uma questão de praticidade e facilidade, enquanto a ética, mesmo sendo relevante, veio a ser discutida milhares de anos depois. Com isso, é justo dizer que, mesmo sendo impraticável o fato de garantir judicialmente direitos a todos os animais e a fazê-los responder criminalmente, a ética nada tem a ver com isso e é uma discussão a parte. Penso, portanto, que direitos positivos ou criados especificamente para proteger moralmente os animais são algumas das medidas cabíveis atualmente, porém não exclusivas, além de não anularem a questão da eticidade. Algo não se torna ético porque é prático, mas busca-se fazer prático porque é ético.

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