Ética e direitos animais (5): A premissa sobrevivencialista


A Ética tem compromisso com a sobrevivência humana?

Quando chegamos à conclusão de que agressão a animais é antiética, e diante da suposição de que respeitar essa conclusão comprometeria nossa sobrevivência, a premissa de que algo não pode ser ético se culminar na nossa extinção é sempre levantada. Todos os autores respondidos nas partes passadas desta série, inclusive, se apoiaram nessa premissa em algum momento.

Molyneux escreveu que
"Nenhum ser humano pode existir sem matar outros organismos como vírus, plantas ou talvez animais. Nesse caso, "vida humana" é definida como "má". Mas se a vida humana é definida como mal, então ela não pode ser má, uma vez que a evitabilidade se torna impossível."
Rothbard, por sua vez, alega que
"se a teoria [da ética] fosse estendida além de seres conscientes para todos os seres vivos, como bactérias e plantas, a raça humana iria extinguir-se rapidamente "
E até mesmo Hoppe flertou com a premissa, ao dizer que
"se ninguém tivesse o direito de controlar coisa alguma, exceto seu próprio corpo, então todos nós deixaríamos de existir e o problema de justificar-se normas —bem como todos os problemas humanos— simplesmente não existiriam."
Esses trechos foram respondidos em seus respectivos artigos, dentro do método de pensamento de cada autor, mostrando que o método dele não dava suporte nem era compatível com essa premissa sobrevivencialista. Mas isso só mostrou que ela não era suportada pelo pensamento do respectivo autor. Ainda é preciso considerá-la em seus próprios méritos e é isso que pretendo fazer neste artigo.


Esta premissa está tão enraizada no pensamento comum que é difícil até mesmo encontrar uma fundamentação explícita para ela: simplesmente assume-se que ela é verdadeira e pronto. A melhor fundamentação em que consegui pensar é a seguinte:


A ética não pode (S)declarar algo que é condição para a sobrevivência / continuidade da existência da humanidade como antiético

Porque (P)a ética é produzida pela humanidade

e, dado (P), uma ética que fizesse (S) estaria "implodindo" sua própria condição de existência.


O problema está em (P) e isso nos leva a uma questão mais ampla

Ética objetiva vs Ética subjetiva
Considere as seguintes questões: o estado só passou a ser antiético depois que, digamos, o Hoppe escreveu o artigo dele? Estupro só passou a ser errado quando a primeira pessoa pensou nisso? Ou já era desde sempre?

Se a ética é objetiva, ela existe independentemente de todo mundo, alguém ou ninguém saber dela e respeitá-la. Ser objetiva significa, exatamente, que ela é, desde sempre, independentemente de sujeitos. Uma ética objetiva nos garante que agredir já era errado antes de o primeiro humano aparecer — e que vai continuar sendo errado mesmo depois que o último de nós tiver morrido.

Mas verdades desse tipo não dependem da nossa existência, então por que querem que elas tenham que zelar pela nossa existência?

Por exemplo, ninguém diz que "2+2=4 só é uma verdade matemática conforme isso possibilite a nossa sobrevivência para que saibamos disso". 2 porções de comida + 2 porções de comida não passa a ser 5 se a verdade nutricional for de que você precisa de 5 porções pra sobreviver, nem a verdade nutricional passa a ser outra só porque essa significará que você vai morrer. A gravidade, uma verdade física, não muda se você precisasse que ela fosse um pouco menor para não morrer numa queda. Se a verdade for que um meteoro está vindo pra Terra nenhum astrônomo dirá que "é mentira, porque se ele vier nós vamos todos morrer e aí ninguém mais vai poder praticar astronomia pra saber sobre meteoros, e isso implodiria a condição de existência da astronomia!"

Por que a Ética seria uma exceção, em que a verdade seria guiada pela nossa sobrevivência? A premissa sobrevivencialista simplesmente não cabe no contexto de uma ética objetiva, porque a verdade objetiva não tem compromisso com a continuidade da existência daqueles capazes de sabê-la.

Uma ética objetiva é incompatível com (P). Mas e se enxergamos as verdades éticas não como objetivas, mas sim subjetivas? Nesse caso (P) seria verdadeira. Se a ética é algo simplesmente criado por seres racionais (em vez de descoberto por eles), algo que só existe na nossa cabeça, então ela de fato só existiria e só teria implicações enquanto houvesse alguma cabeça capaz de manter essa invenção ativa — e ressalte-se que essa não é de forma alguma a aspiração dos autores libertários, os quais alegam estar descrevendo verdades éticas objetivas, e não meras invenções deles.

Nesse contexto a premissa sobrevivencialista estaria bem fundamentada?

Também não. Todo esse papo sobre ética subjetiva vs objetiva diz respeito à condição de existência da ética. Um julgamento que negasse a existência daquilo que o possibilitou seria contraditório — esta é exatamente a contradição prática apontada por Hoppe em seu parágrafo. Não se pode negar a existência anterior daquilo que possibilitou um julgamento presente, mas daí a concluir que este julgamento tem que manter a existência futura do que o possibilitou é um salto sem fundamento nenhum. Do fato de que ninguém pode negar que está vivo não se conclui que "só é válido propor algo que nos manterá vivos".


De onde vem a força da premissa sobrevivencialista, afinal?
O apelo que essa estratégia tem é utilitário: nós somos seres que perseguem o bem-estar de estar vivo. É uma questão evolutiva, simplesmente: nós só estamos aqui porque cada um na nossa cadeia de ancestrais foi eficiente não em "ser ético", mas sim em continuar vivo e procriar. Em termos práticos, nós não somos programado para ser éticos, e sim para sobrevivermos.

Mas os autores aprioristas rejeitam fortemente o utilitarismo ético. E aí nos vemos tentando conciliar duas coisas distintas: aquilo que é racional, com aquilo que nos satisfaz. Se queremos brincar de discutir éticas racionalistas apriori enquanto somos seres orientados à utilidade, tudo bem, mas tenhamos a honestidade de, quando a coisa ficar feia no apriori, não recorrer à utilidade que o apriorismo rejeita.

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