Praxeologia: o algoz do livre-arbítrio


É comum a crença entre os austrolibertários não só de que existe um livre-arbítrio, como também de que a praxeologia prova a existência dele. Neste artigo pretendo demonstrar exatamente o contrário: a praxeologia nos fornece uma prova definitiva CONTRA a existência de um livre-arbítrio — note bem, este post não é uma "refutação à praxeologia", é uma refutação à existência do livre-arbítrio.

Para isso, vamos entender primeiro as proposições do livre-arbítrio, do determinismo e da praxeologia.

Livre-arbítrio
Uma coisa importante a se observar é que livre-arbítrio é uma palavra composta: trata-se de um arbítrio que seja livre. Livre de quê? De determinantes causais não escolhidas pelo indivíduo em questão. Livre-arbítrio é, assim, a ideia de uma vontade autônoma, que toma decisões (arbitra) sem ser determinada por elementos que esta vontade não determinou.

Determinismo
Basicamente o determinismo nega a ideia de que tenhamos livre-arbítrio: temos um arbítrio, isto é, decidimos coisas, mas não de forma livre e não-determinada.

Praxeologia
A praxeologia nos traz o Axioma da Ação. Segundo Mises, a Ação possui 3 condições: ela é (1)motivada por um estado de desconforto, diante do qual (2)a mente do ser sujeito a este desconforto imagina situações que seriam de maior satisfação, e ele então (3)identifica um comportamento que espera ser capaz de afastar ou pelo menos aliviar o seu desconforto.

Estas são as 3 condições para ocorrer uma Ação, que é a execução (ou pelo menos a tentativa de execução) do comportamento que o agente espera que vai levá-lo da situação de menor satisfação à de maior satisfação visualizada por ele.

Praxeologia x livre-arbítrio
Ao analisar as condições da Ação, percebemos que não há liberdade em nenhum de seus momentos:

(1) estado de desconforto
Não escolhemos quais coisas nos trazem desconforto. Uma pessoa com claustrofobia não escolheu sentir o desconforto que sente quando fica em locais fechados — e esse desconforto não escolhido por ela será o gatilho para várias de suas ações. Ademais, se fosse possível escolher quais coisas causam desconforto, bastaria que uma pessoa obesa escolhesse sentir desconforto (em vez de prazer) ao comer chocolates, ou que um fumante escolhesse sentir desprazer ao fumar.

(2) cogitação de situações de maior satisfação
Severamente limitada pela nossa própria capacidade mental e de imaginação, a qual também não escolhemos nem determinamos. E, principalmente, também não escolhemos quanta satisfação obteremos com alguma coisa, isto é, não escolhemos quais coisas nos trazem quanta satisfação.

Também não é o indivíduo que escolhe sua preferência temporal, isto é, não é ele que escolhe valorizar mais $100 agora do que $110 daqui a 2 meses, ou o contrário. Ele simplesmente sente maior satisfação por um do que por outro, e isso definirá se sua preferência temporal é alta ou baixa e suas ações.

(3) identificação o comportamento apto a alcançar o fim
Só podemos arbitrar dentre comportamentos que sejamos capazes de conceber, mas esta capacidade de conceber comportamentos também é limitada pela nossa própria capacidade mental e de imaginação, a qual, novamente, não é escolhida nem determinada por nós. Além disso, uma vez identificada uma lista de comportamentos possíveis, como arbitramos dentre eles aquele que será adotado? Escolheremos aquele que pareça mais apto a alcançar o fim almejado, e este juízo de aptidão será feito conforme a nossa capacidade mental, a qual não determinamos.

Rebatendo argumentos comuns
No artigo Qual a forma correta de se estudar o homem, Rothbard apresenta 4 argumentos comuns contra o determinismo e em defesa do livre-arbítrio:
"O homem nasce sem conhecimento inato de quais fins deve escolher e quais os meios e como usá-los para atingi-los."
Já vimos que o homem não escolhe seus fins. Seu fim, e isso conforme a praxeologia, é o de alcançar estados de maior satisfação. Não configuramos quais coisas nos trazem maior satisfação, nem quais coisas nos trazem menor satisfação, nem quais coisas nos causarão os desconfortos que motivam a ação. O arbítrio do homem é mera questão de identificar qual meio parece mais apto a alcançar tais fins não escolhidos por ele. Essa capacidade de arbitrar é exercida conforme as possibilidades/capacidades do cérebro do indivíduo, as quais ele também não escolheu nem determinou. Onde há espaço para livre-arbítrio nisso aí? Em lugar nenhum.
"Se somos determinados pelas ideias que aceitamos, então X, o determinista, é também determinado a acreditar no determinismo, enquanto Y, o que acredita no livre arbítrio, também é determinado a acreditar na sua própria doutrina. Uma vez que a mente humana não é, de acordo com o determinismo, livre para pensar e chegar a conclusões sobre a realidade, é um absurdo X tentar convencer Y ou qualquer outra pessoa da verdade do determinismo."
O determinismo não diz que pessoas não podem mudar de julgamento, só diz que essa mudança é determinada, e não livre. Se X acredita na premissa P, ele pode, mediante outros inputs, passar a julgar no futuro que a premissa P é falsa e que outra premissa Q é que é verdadeira. Tudo que o determinismo tem a dizer é que esta mudança de julgamento não se deu livremente, mas sim causada por tais inputs e conforme as configurações do cérebro que os recebeu e os avaliou.

Quando a pessoa X diz algo à pessoa Y, tudo que ela está fazendo é emitindo inputs para serem processados por Y, na expectativa de que estes inputs façam Y mudar seu julgamento, determinado pelos próprios inputs e pela capacidade de processamento do próprio Y. E, como nos ensina a praxeologia, a pessoa X está fazendo isso porque julga que é o que vai lhe render maior satisfação.
"Após muitos séculos de declarações arrogantes, nenhum determinista surgiu com nada como uma teoria que determinasse todas as ações dos homens. (...) Certamente nós podemos, pelo menos, dizer aos deterministas para ficarem quietos até que eles possam oferecer as suas determinações – incluindo, obviamente, suas determinações previstas de cada uma das nossas reações à sua teoria determinista."
A verdade de que vivemos num universo determinista não implica em que sejamos capazes de determinar algum dia com precisão todas as ações. A alegação determinista é de que se fosse possível conhecer todas as variáveis envolvidas na causação seria possível determinar seu resultado, e não de que temos ou viremos a ter a capacidade necessária para efetuar tal previsão.
"Os deterministas frequentemente insinuam que as ideias de um homem são necessariamente determinadas por ideias de outros, da “sociedade”. Todavia, A e B podem ouvir a mesma ideia ser proposta; A pode adotá-la como válida, enquanto B não o faz. Cada homem, portanto, tem a livre escolha de adotar ou não uma ideia ou valor." 
O fato de que dois indivíduos respondem de forma diferente a algo externo não tem relevância na questão da causalidade em seus cérebros, já que esses dois indivíduos possuem cérebros completamente diferentes e é compatível com o determinismo que cérebros diferentes façam julgamentos diferentes sobre uma mesma situação.

Como de costume, Rothbard entendeu mal a questão e a respondeu de forma completamente furada.

Mises defendia o livre-arbítrio?
Na verdade, não — o que torna ainda mais curioso o apego dos austrolibertários a este conceito. Em Ação Humana, capítulo II, item 6, Mises escreveu explicitamente:
"O conteúdo da ação humana, isto é, os fins pretendidos e os meios escolhidos e aplicados na consecução destes fins, é determinado pelas qualidades pessoais de cada agente homem. O homem é o produto, é a herança fisiológica de uma longa evolução zoológica. Nasce como descendente e herdeiro de seus ancestrais; seu patrimônio biológico é o sedimento, o precipitado, de toda experiência vivida por seus antepassados. O homem não nasce no mundo em geral, mas num determinado meio ambiente. Suas características inatas ou herdadas e tudo o que a vida lhe imprimiu fazem do homem o que ele é durante a sua peregrinação terrestre. Tal é a sua sina e o seu destino. Sua vontade não é “livre” no sentido metafísico do termo. É determinada pelo seu passado e por todas as influências a que estiveram expostos ele mesmo e os seus ancestrais. 
A herança e o meio ambiente moldam as ações do ser humano. Sugerem-lhe tanto os fins como os meios."
Mas e as implicações disso?
Como fica a responsabilização das pessoas? A ética e o direito não estão baseadas na ideia de um livre-arbítrio? Elas não ruiriam sem ele? Em primeiro lugar mesmo se a ética e a responsabilização fossem ruir com a queda do livre-arbítrio, isso não significaria automaticamente que ele é verdadeiro, só significaria que ele é um conceito útil para manter estas outras construções. Porém, felizmente, o livre-arbítrio não é um conceito necessário para essas questões e responderei a estas perguntas no próximo post.

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