Ética e direitos animais (3) - Racionalidade, Uso e Ação ...Humana?


O artigo anterior, Crítica à conclusão hoppeana, tratou da injustificabilidade argumentativa da agressão a animais, assumida a validade incontestável da norma de primeiro-usuário-primeiro-dono.

Uma última saída àqueles que negam direitos a animais seria apelar a um significado especial para "uso", argumentando que ele é feito por meio da ação, que só seres humanos, racionais, seriam de fato seres que agem e que, dessa forma, animais não poderiam ser donos porque nem sequer usam seus próprios corpos.

O que é uso - considerações sobre controle direto
Em primeiro lugar, vamos definir então o que caracteriza o "uso": trata-se de um vínculo de controle direto entre o possuidor e a coisa possuída. No artigo How We Come to Own Ourselves, Stephan Kinsella nos fornece uma boa explicação sobre isso:
"O "link objetivo" no caso da propriedade de corpos é o relacionamento único entre uma pessoa e "seu" corpo - o controle direto e imediato sobre o corpo dele, e o fato de que, pelo menos em algum sentido, um corpo é uma dada pessoa e vice-versa. Isso é o que constitui o link objetivo e suficiente para conceder àquela pessoa um melhor título [de propriedade] a seu corpo do que o de qualquer terceiro reclamante, até mesmo seus pais. 
Além disso, qualquer terceiro que reivindique a propriedade de outro corpo não pode negar este link objetivo e o status especial dele, já que esse terceiro necessariamente o pressupõe em seu próprio caso. Isso é assim porque ao procurar dominação sobre o outro, ao afirmar propriedade sobre o corpo de outro, esse terceiro tem que pressupor sua própria propriedade sobre seu corpo, o que demonstra que ele reconhece uma certa significância neste link, ao mesmo tempo em que desconsidera a significância do link para o outro."
Kinsella, é claro, estava pensando em "pessoa" quando escreveu, mas nada do que ele disse deixa de ser válido para animais. O relacionamento único entre um ser e seu corpo não deixa de existir nem de ser um link objetivo só porque esse ser é de outra espécie; e nenhum terceiro pode negar a significância desse link, pois ao fazer isso o ato dele já demonstra a significância desse link.

No mesmo sentido, Hoppe escreveu:
"Ninguém poderia considerar o meu corpo como sendo um produto de sua vontade da mesma forma como eu posso considerá-lo um produto da minha vontade; essa pretensão ao direito de determinar o uso desse recurso escasso que chamo de "meu corpo" seria uma reivindicação de não-usuários, de não-produtores, e estaria baseada exclusivamente na opinião subjetiva, ou seja, numa declaração meramente verbal de que as coisas deveriam ser desta ou daquela forma."
Declarações meramente verbais baseadas na opinião subjetiva de que as coisas deveriam ser desta ou daquela forma são precisamente tudo que humanos têm a oferecer quando se trata de animais. Não passa de "Eu gosto de bacon" e "O porco é meu porque eu o capturei e me declarei dono". Mas o FATO, objetivo, ainda é que o próprio porco é o primeiro —e único— ocupante e controlador direto do respectivo corpo.

Verificabilidade do link objetivo de controle direto
Uma vez entendido que a autopropriedade tem como marco inicial o link objetivo de controle direto, pode ser formulada uma questão sobre a verificabilidade desse link. Algo como "bem, animais podem até ser os controladores de seus corpos, mas como eles provariam isso? hehe que pena". Afora a capenguice intelectual de considerar ausência de prova como prova de ausência, quero destacar que mesmo se um animal não possa ele próprio demonstrar (num sentido filosófico-argumentativo) algo, isso não significa que nós ainda não possamos verificar esse algo por nós mesmos.

De fato, Hoppe fala em termos de um link objetivo intersubjetivamente verificável. Entendamos o que esses dois termos significam:

Sobre a verificabilidade, o link precisa ser verificável, não "demonstrável pelo próprio linkado" nem "já demonstrado por ele". A questão então é se o link é verificável, não se o próprio interessado tem capacidade de executar no aspecto filosófico essa demonstração.

Também não se trata de um link "intersubjetivamente verificado". Isso significa que o link não precisa ter sido verificado entre sujeitos para ter significância, mas que ele possa sê-lo

Na verdade, dado que é possível fazer proposições "como pensamento interno" para "convencer a si próprio", como o próprio Hoppe reconhece, não é necessário sequer mais do que o próprio sujeito pensando consigo mesmo para se concluir pela significância do link. E, principalmente, não há necessidade do envolvimento de mais de um sujeito também para a verificabilidade da existência dos respectivos controles entre dois ou mais sujeitos.

Vejamos. Segundo Hoppe, a resposta para a questão de o que faz o meu corpo "meu" repousa no óbvio fato de que isto não é apenas uma asserção mas que, à vista de qualquer um, esse é realmente o caso. E esse será o caso conforme o corpo em questão expresse ou "objetifique" a vontade daquele ser. A verificação desta expressão de vontade, sugere Hoppe, pode ser feita da seguinte forma:
"Quando eu anuncio que vou levantar meu braço, virar minha cabeça, relaxar na minha cadeira (ou o que seja) e esses anúncios em seguida se tornam verdade (são cumpridos), então isto mostra que o corpo que fez isso foi de fato apropriado pela minha vontade. Se, ao contrário, meus anúncios não mostrassem nenhuma relação sistemática com o comportamento efetivo do meu corpo, então a proposição "esse é meu corpo" teria que ser considerada como uma asserção vazia e objetivamente infundada; e da mesma forma essa proposição deveria ser rejeitada como incorreta se em seguida ao meu anúncio não apenas meu braço se erguesse, mas também sempre os braços de outras 3 pessoas (nesse caso alguém provavelmente estaria inclinado a considerar os corpos dessas outras 3 pessoas como "meus")."
O que Hoppe parece não ter percebido é que essa demonstração não só permite encontrar o que é meu, mas também e necessariamente aquilo que não é meu. Os limites do meu controle não trazem conclusões só "para o lado de dentro", sobre o que eu controlo diretamente, mas também "para o lado de fora" do limite: demonstrando o que eu não controlo diretamente. Quando faço a prova da extensão do meu controle direto, isso já me diz também que os braços das outras 3 pessoas não estão sob o meu controle direto!

Se observamos que estes braços (ou qualquer outra coisa) não exibem qualquer comportamento, então obviamente não pode haver qualquer entidade exercendo controle direto sobre eles, e portanto eles podem ser apropriados, isto é, passarem a ser controlados (controle indireto) pela vontade de alguém.

Mas se exibem comportamento, então há alguma vontade envolvida. Além de possuírem atributos, como seus corpos, seres animados, por definição, exibem comportamentos (ao contrário dos inanimados, que só possuem atributos). Ora, mas se os comportamentos dos seres animados ocorrem e não são controlados por mim, a única conclusão é que existe outra entidade que o controla diretamente, conforme a vontade dela, que não é a minha. Se ela é a controladora direta, só ela pode ser a proprietária, não eu.

Assim, concluindo, a verificação de quais comportamentos estão sob controle direto da minha vontade já implica necessariamente na demonstração de que outros comportamentos estão sob controle direito de outras vontades, que não a minha, dispensando assim qualquer esforço filosófico adicional de demonstração por parte delas frente a mim. Ou seja, mesmo que animais não possam apresentar a verificação, eles próprios, qualquer um pode executar tal verificação sozinho.

Com esta conclusão, podemos encerrar em definitivo todos os argumentos que negavam direitos apelando para uma suposta necessidade de o próprio agente provar seus direitos para tê-los e que animais (bem como bebês ou retardados) não conseguiriam cumprir tal necessidade. Com o raciocínio desenvolvido aqui, fica evidente que tal verificação pode ser feita individualmente, não necessitando de qualquer ação de terceiros para ser realizada, sendo desimportante, assim, se eles próprios podem ou não fazê-la.

Uso (ou controle direto) enquanto ação - algo exclusivo dos humanos?
Esclarecidas as questões quanto à verificabilidade do controle direto, podemos lidar então com o argumento de que controle é feito por meio de ação, mas que animais seriam incapazes de agir. "Ação" aqui faz referência às considerações de Ludwig Von Mises, em seu livro "Ação Humana". Apesar de, logo de cara, Mises já ter intitulado seu trabalho como "ação humana", observemos quais são os pré-requisitos que ele levanta para caracterizar uma ação e vejamos se eles só dizem respeito mesmo a humanos:
"O agente está ansioso para substituir uma situação menos satisfatória por outra mais satisfatória. Sua mente imagina situações que lhe são mais propícias, e sua ação procura realizar esta situação desejada. O incentivo que impele à ação é sempre algum desconforto. Mas, para fazer um ser agir não bastam o desconforto e a imagem de uma situação melhor. Uma terceira condição é necessária: a expectativa de que um comportamento propositado tenha o poder de afastar ou pelo menos aliviar o seu desconforto."
Suponha um cachorro que num dia frio resolve ir pro meio das cobertas. Ele vislumbrou a imagem de uma situação melhor (se aquecer) e, com a expectativa de que o comportamento propositado de ir pras cobertas teria o poder de afastar ou pelo menos aliviar o seu desconforto, foi isso que ele fez, Este evento incorporou os 3 requisitos da ação, logo não há porque declarar que tal cachorro não teria AGIDO.


Pode haver algum questionamento quanto ao comportamento do animal se tratar realmente de algo propositado. Diz-se "propositado" um comportamento que tenha sido feito com algum fim: o comportamento do cão evidentemente foi feito tendo em vista o fim de que ele se livrasse do desconforto causado pelo frio. Não fosse o comportamento desempenhado propositadamente, o animal reagiria de forma simplesmente aleatória frente a um mesmo desconforto: hoje pode ser que ele vá para as cobertas, amanhã pode ser que ele pule na tigela de água, no outro dia, comece a roer a própria perna e etc. Não é o que ocorre. Uma vez entendido a vínculo entre um comportamento e seus resultados, o animal (incluindo os animais da espécie humana) o executará propositadamente para alcançar situações mais satisfatórias. O propósito da ação também é revelado quando observamos o comportamento de frustração ou confusão que observamos no animal quando ele tenta algo e não consegue: ora, tais comportamentos só fazem sentido a partir do momento em que havia uma propósito na ação, que não foi atingido. Confusão e frustração demonstram quebra de expectativa, e só pode manifestar tal comportamento quem já tinha uma expectativa de início.

O que Mises descreveu não foi exatamente "ação humana", nem mesmo a ação racional como um todo, mas algo como a "função cerebral econômica" - e mesmo animais, naquilo que são capazes de desempenhá-la, se comportam conforme tal função, inclusive.

Tão logo aprendam que um objeto pode ser trocado por outro, por exemplo, animais se comportam de acordo com os princípios praxeológicos, revelando por exemplo possuírem uma escala de preferência e agindo segundo ela. Você pode constatar isso ao assistir o experimento abaixo, em que o macaco protesta efusivamente por receber, por igual moeda, um bem inferior ao de outro colega:


As diferenças entre humanos e animais, naquilo que diz respeito às ações, parecem ser mais quantitativas do que qualitativas. Nós conseguimos considerar mais variáveis ("imaginar mais situações que lhe são mais propícias"), fazer cálculos mais complexos entre elas, apreender mais relações de causa e efeito no mundo, mas é só isso.

Ação propositada
Se a ideia é que direitos de propriedade se aplicam apenas para aqueles que agem, os animais continuam  incluídos, pois claramente desempenham ações.

Uma última observação: as considerações de Mises sobre a ação se deram numa esfera econômico-descritiva, não ética. Quando Hoppe identificou a argumentação como incluída na categoria da ação, o efeito disto é simplesmente que o método da ética argumentativa passou a desfrutar do mesmo status axiomático/inegável da economia (praxeologia) miseana, e não que as normas validadas pela ética argumentativa só se estenderiam a quem é capaz de agir.


Com as considerações deste post e dos anteriores, espero ter demonstrado que os argumentos dos autores libertários popularmente levantados não nos permitem excluir animais de direitos, ou alegar que eles estejam excluídos de considerações éticas. Muito pelo contrário, aliás, a análise que fizemos da proposta libertária aponta para a validade de suas disposições éticas de tal forma que ativamente desautoriza agressões a animais. Podemos, por fim, formular de fato um argumento positivamente em prol dos direitos dos animais da seguinte forma:

1. A validade da norma de que o primeiro usuário seja o dono (autoproprietário) é inegável (conforme o raciocínio da Ética Argumentativa)
2. O animal é o primeiro usuário do respectivo corpo
3. Logo, ele é o dono daquele corpo (autoproprietário)
4. É impossível justificar agressão ao dono, pois isso envolveria negar a norma da autopropriedade. Mas, como em (1), ela é inegável
5. O animal é o dono
6. Agressão ao animal é injustificável.


Se a Ética Argumentativa não só fracassa em negar direitos a animais, como na verdade oferece um paradigma para demonstrá-los, haveria então alguma outra proposta a recorrer? No próximo post, Ética e direitos animais (4) - Resposta a Molyneux analisaremos a proposta do libertário Stephan Molyneux, em seu Universaly Preferable Behaviour.

No último post da série, estão as respostas para algumas perguntas comuns, sobre as implicações práticas da conclusão pelos direitos dos animais, especialmente sobre responsabilização de agentes.


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Mais sobre o corvo: no vídeo a seguir ele conhece as tarefas individuais, e pela primeira vez precisa combiná-las da forma correta para conseguir o objetivo. 

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